domingo, 23 de fevereiro de 2014

Reflexão: do "fiu-fiu" ao estupro coletivo

Estivemos refletindo nos últimos dias sobre a questão da violência contra a mulher. E fomos do fiu-fiu ao estupro coletivo em algumas conversas que partiram de um relato bem marcante de uma profissional que passa pela seguinte situação: como tem uma função administrativa relacionada ao atendimento de construtoras, transita entre escritórios e obras diariamente e quando está nas obras é frequentemente assediada de formas que não só a constrangem como também causam-lhe temor de que algo mais invasivo ou violento venha a ocorrer com ela - note-se: em ambiente/situação de trabalho.

Após muito pensar e discutir - mesmo! - pensamos ter chegado a alguns pontos que nos atrevemos a compartilhar. Procuramos pensar um pouco mais sobre a questão do desejo em ambos os lados e os efeitos que provocam nos gêneros supostamente complementares. Adiantamos que uma série de generalizações não muito cuidadosas serão feitas a bem da concisão. Vejamos: a mulher, como resultado da resolução tardia do complexo de Édipo (ver, entre outros, Obras Completas do Sig Vol XIX  pg 309 em diante) busca ter sua beleza reconhecida eminentemente em olhares. Ou seja, ser vista e ver sua beleza reconhecida no olhar do outro. Embora haja a insinuação da sensualidade e do despertar do desejo sexual no outro, isto fica (e deve ficar) velado e não dito, a priori. Se for dito, o elogio e o reconhecimento, segundo nossa observação e vivência, deveria ficar no campo do gentil galanteio: como você está elegante, como você está bonita, como você ficou bem assim - ou o que o valha. Mas eis que a contraparte estimulada por esta mulher hipotética é um homem “genérico” que, segundo nos lembra Freud (Diferenças Anatômicas), teve desenvolvimento completamente diferente e alimenta fantasias que não pressupõem a supressão da componente do desejo sexual (e da competição). 
Com isso, temos diversas reações possíveis, portanto, desde o fiu-fiu até os casos de estupro coletivo de que se tem falado na Índia, ultimamente. Enquanto para a mulher uma barreira “natural” (inconsciente) atua para restringir-lhe o acesso ao desejo sexual associado à sua imagem, para o homem, essa barreira tem que ser construída moralmente, e lhe custa mantê-la. Tanto que às vezes, e com frequência muito maior do que a que podemos aceitar, essa barreira, ou limite, ou lei, não funciona e sucumbe ao desejo. E quando isso acontece, não nos surpreendamos com uma série de racionalizações bizarras que acompanharão o fenômeno: desde o sentimento de desprezo, passando pelo de posse legitimada pelos “sinais provocantes emitidos”, até o de “ela estava praticamente pedindo isso”. Dinâmicas perversas à parte, ativemo-nos ao desafio de dividir um pouco o quadro em possíveis desdobramentos:

1. A criação machista
A fantasia de posse, desprezo e superioridade detectada no discurso geral masculino de que nos fala o texto do Sig (idem) é sustentada e cultuada quase como regra e, notemos, só foi questionado mais apropriadamente a partir do séc XX, a partir da consolidação das reivindicações dos movimentos feministas. Antes disso, a mulher era coisificada, mesmo. Hoje, anda, nos admiramos abismados com o movimento das mulheres em alguns países do islã que buscam - votar? entrar na universidade? - não! apenas não terem mais os clitóris de suas filhas compulsoriamente mutilados, conforme o costume de suas sociedades. Portanto, não nos enganemos: há ainda muito chão para ser caminhado. Neste ponto da discussão surgiu uma grande dúvida: mas não dá para fazer nada, então? O proto-homem está aí e é um fato da “natureza” que a sociedade é machista? Não. De forma nenhuma. A linha a ser tomada, na nossa opinião, seria a de que a educação sexual na escola fosse tratada de maneira um pouco diferente, de forma que abordasse não apenas o caráter fisiológico, reprodutivo e preventivo - patologicamente falando - da sexualidade, mas também a interação de gêneros, a identidade sexual e, talvez principalmente, o reconhecimento das diferenças de expectativa (fantasia) de cada gênero, buscando, num exercício de interpessoalidade, civilizar - e esse é o termo - a expressão do desejo sexual. Utilizamos o termo civilizar, pois pensamos que o vetor de inclusão da mulher na vida civil foi o marco que mais conflitos expôs na questão da violência, pois a partir do reconhecimento da cidadã, seus direitos se legitimaram, seus problemas começaram efetivamente a serem contados e discutidos e é aí que se encontra terreno simbólico firme para que alguma mudança ocorra.

2. O problema do “padrão-periguete”
Que a sensualização da mulher é um negócio - no sentido mais comercial da palavra - não há dúvida. A venda da imagem da mulher provocante - que atiça a fantasia tanto da mulher (poderosa?) quanto do homem (gostosa/desejável?) sempre deu retorno. Mas acho que vale refletirmos um pouco mais sobre o que é isso, também sob uma dialética do desejo. Se formos graduar - se é que isso é possível - a sensualização, podemos pensar em que uma mulher vestida como periguete aproxima-se bastante da fantasia de permissividade e provocação sexual que em outros estilos feminios de se vestir é mais - ou totalmente - velada. 
Ou seja, para o mundo masculino caricato, esse apelo leva à imediata sustentação no real de uma correspondência à fantasia masculina da relação sexual possível - porque sugerida - e, talvez até, quem sabe? desejada por essa mulher. Não é a roupa da mulher que vai univocamente levar a situações de maior risco de violência, pois os relatos de estupros não estão associados de maneira nenhuma a este tipo de maneira de se vestir, mas pode aumentar a confusão a ser processada pelo nosso proto-homem que, diante dos sinais que ele considera claros como de concessão ao seu desejo, não raramente acaba atravessando a fronteira do comportamento razoável ao interpretar o papel de mulher provocante com o de mulher absolutamente disponível. Vemos aqui, portanto, um outro desdobramento do conflito de fantasias entre os gêneros didaticamente representados nesta reflexão e que nos leva a pensar no desserviço que presta à feminilidade o exagero e a banalização do apelo sexual feminino, na medida em que é cultuado como padrão de beleza e que, não esqueçamos, é infligido desde cedo às crianças. Talvez estejamos exagerando, pois, afinal, muitas (tomara!) das mulheres que eventualmente nos leem agora foram entretidas com várias periguetes instituídas e travestidas de educadoras pela mídia de massa em suas infâncias e aparentemente não tiveram suas auto-imagens afetadas por essa influência. Ou tiveram?... Convenhamos que é muito marcante o quanto de insatisfação e decepção com seus próprios corpos são observadas nas conversas e depoimentos da chamada mulher moderna. De onde será que vem isso?

3. Reflexos na sexualidade feminina

Então, recapitulando, a mulher veste-se para ficar bonita, uma fantasia construída a partir de uma série de identificações, para si e para um homem idealizado que é para ela, a priori, inicialmente dessexualizado. Ok. Mas à medida que o seu próprio desejo vai aflorando e ela entra na dinâmica do jogo sexual de fato, às vezes esbarra em algum dos pontos que levantamos. Afinal, ao mesmo tempo em que percebe o quanto pode ser (mais) desejada pelo homem de sua escolha ao corresponder às suas (dele) fantasias sensuais, também está exposta a algumas associações potencialmente negativas: a do “padrão periguete”, por exemplo - aquela que se expõe ao risco da violência machista por ressoar com a sua fantasia de mulher disponível - ou até mesmo a da prostituta - aquela que está incondicionalmente disponível ao desejo do homem  e será paga por isso. Ou seja, essencialmente não há nada de mal, pelo contrário, pode ser - e é bom que seja - muito divertido a mulher poder desempenhar o papel de super-sensual, transitando entre as várias disposições da sua sexualidade. Mas a exposição a esse papel pode acabar associada à lembrança ou associação com situações de preconceito, humilhação, exposição ou mesmo de violência factual, que resumem e até mesmo bloqueiam a concretização da fantasia e o exercício de desejo femininos em relação ao homem. É aí que pensamos que o direito e o desejo de se mostrar sensual, bonita e provocante, por causa da não complementaridade das fantasias entre os gêneros, reserva uma tarefa complicada para algumas mulheres, que têm que fazer-se bastante seguras de si para conseguir irrelevar ou repelir desde os fiu-fius aparentemente inocentes até os comportamentos inadequados e/ou violentos de desconhecidos (ou conhecidos) e manterem-se donas de seu desejo e de sua sexualidade.

Sugerimos ainda, o seguinte vídeo, para dar mais consistência ao caldo:






sábado, 15 de fevereiro de 2014

Diferença entre psiquiatra, psicólogo e psicanalista




Esta é uma dúvida que sempre aparece quando comentamos nossa orientação psicanalítica. Vamos às definições que foram publicadas na Super Interessante de Jan/2010:



PSIQUIATRA
HISTÓRIA: Quando surgiram, ainda no século 18, os psiquiatras trabalhavam apenas em hospícios. Só quando a psiquiatria pegou emprestados conceitos da psicologia é que casos mais moderados foram para consultórios.
CASOS: Trata sintomas mais graves e de definição mais clara, como esquizofrenia, Alzheimer e depressões profundas.
COMO ATUA: Como nesses casos só a terapia é muito pouco, o tratamento é feito com remédios, sendo monitorada a reação que o paciente tem a eles.
FORMAÇÃO: Seis anos do curso de medicina, mais 3 de residência.

PSICÓLOGO

HISTÓRIA: O termo surgiu na Grécia antiga, mas seu significado moderno só veio no século 20.
CASOS: Há desde os psicólogos sociais, que estudam as massas, até os de RH, que selecionam candidatos, mas o que atende no consultório é o psicoterapeuta, que diagnostica casos de fobia ou ciúme excessivo, por exemplo.
COMO ATUA: Muda suas técnicas de tratamento constantemente, sempre em busca de uma interação com o paciente - daí a sua fama de tagarela entre psiquiatras e psicanalistas.
FORMAÇÃO: Cinco anos do curso de psicologia.

PSICANALISTA
HISTÓRIA: Teve origem no século 19, com o médico austríaco Sigmund Freud.
ATUAÇÃO: Medos, raivas, inibições - as anormalidades normais.
COMO ATUA: Mais do que uma cura, o que se busca é a transformação da pessoa, a partir da compreensão dos seus problemas. O paciente fala tudo que vem à cabeça; cabe ao psicanalista interpretar de forma incisiva o que ele quis dizer inconscientemente, ajudando-o no autoconhecimento.
FORMAÇÃO: Especialistas dizem que só quem foi analisado pode analisar seus pacientes, e chega-se a passar 8 anos em cursos de sociedades psicanalíticas.
(Fontes Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP e psicanalista; Suely Gevertz, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.)

Já ajuda bastante, mas achamos que vale comentar um pouco mais.
Existem psicólogos e psiquiatras que são psicanalistas, porque fizeram sua formação em psicanálise depois de suas formações acadêmicas. Existem psicólogos não-psicanalistas, mas que atuam em uma linha psicanalítica, sem adotar todos os preceitos da teoria constituída. Além disso, há diversas linhas de psicoterapia: comportamental, gestalt, congnitiva, psicodrama, entre outras.

A formação do psicanalista pode ser bem variada. Predominantemente, são psicólogos e médicos. Mas também há filósofos, advogados, fonoaudiólogos e até engenheiros - como é o caso deste que tecla agora -, pois a formação em psicanálise não considera o conhecimento acadêmico, mas sim o percurso psicanalítico de cada aspirante a atuar nesta área.

Por que este blog?

Este é um blog sobre psicanálise para não psicanalistas. Uma leitura de mundo sob um prisma da psicanálise. UM prisma, porque não é nossa pretensão – e nem seria possível – expressar O prisma da psicanálise, pois, afinal, trata-se de um conhecimento e de uma prática já apropriados por tantas pessoas e profissionais que continuam produzindo e aperfeiçoando a técnica e a teoria que não cremos que haveria unidade ou concordância em diversos momentos. Mas há alguns pressupostos que achamos básicos e que acabam modificando o jeito de olhar o mundo de quem quer que tenha descoberto sua afinidade com este campo e acaba-se por ver as coisas de em um ângulo diferente.

Lembro-me da frase de um querido professor que acabei encontrando no curso de Psicologia da UFPR, anos depois de ter tido aulas com ele no curso fundamental. Surpreso em tê-lo encontrado, perguntei-lhe por que aulas na Psicologia, depois de tantos anos como professor no Colégio Militar, e ele me respondeu:
"É que fui mordido pelo bichinho da Psicanálise..."

Com isso, me dizia de uma paixão por este conhecimento e por algo que o movia quase que misteriosamente. E acho que um pouco disso contagia-nos.