Inaugurando um outro assunto que nos interessa bastante, decidimos comentar filmes que nos chamam a atenção, por darem acesso a reflexões bem pertinentes sobre alguns conceitos da psicanálise e iniciamos, portanto, com o filme Amnésia (Dir.: Christopher Nolan / 2000). Em uma abordagem muito interessante, a história da personagem central, que adquiriu em sua vida adulta uma forma de amnésia total para fatos que tenham ocorrido há mais de cinco ou dez minutos, é enfocada em uma narrativa em que os fatos são apresentados para o expectador em ordem inversa, na clara intenção de convocá-lo ao lugar dessa personagem central. Este protagonista revela-se como um justiceiro ou o que o valha, na medida em que sua motivação principal repousa em um fato crucial: o assassinato de sua esposa e a busca do responsável por isso. O que chama a atenção, entretanto, é o fato de que a cada manhã o protagonista acorda e não se lembra de onde está, como chegou até ali e nem o que deve fazer em seguida. À medida que vai explorando o local onde está e chega até um espelho, percebe que seu corpo (desconhecido) está coberto de tatuagens – feitas por ele mesmo, muitas delas palavras escritas de trás para frente, para facilitar o seu reconhecimento no reflexo do espelho – e que são esses sinais gráficos que lhe descrevem o que deve fazer e como se comportar. Ou seja, são essas inscrições que lhe ditam os contornos específicos de seu desejo. Durante o transcorrer do filme, vê-se que o protagonista, percebendo o valor das tatuagens para a sua existência, sempre que pode tatua-se com uma ou outra informação que lhe pareça mais relevante no momento: um nome, um fato, um lugar. Com isso, vai inscrevendo literalmente em seu corpo as marcas de sua história.
Isso nos faz pensar no que se convencionou chamar de estádio do espelho (Lacan...), em que uma metáfora bastante rica da teoria psicanalítica diz que o sujeito se reconhece, se constitui, a partir do olhar do Outro. A partir de um olhar externo que vê não somente o que é aparente no sujeito, mas que também atribui (inscreve) a este sujeito características e qualidades que fazem parte da expectativa (desejo) desse Outro, o sujeito se faz desejante do desejo do Outro.

Aprofundando um pouco, é quase como se a falta das memórias recentes e o artifício de sustentar a fantasia em marcas concretas no corpo levasse este típico neurótico obsessivo, que estaria satisfeito em apenas imaginar um assassinato, atuar como um perverso, que concretiza a fantasia do neurótico. E nisso é que reside, em nossa opinião, a genialidade deste filme, que nos faz ver algumas fronteiras de estrutura de personalidade serem transpassadas graças aos recursos de uma história bem engendrada e bem narrada.