quarta-feira, 19 de março de 2014

Filme "Amnésia" (EUA-2000 "Memento") - Desejo x Memória

Inaugurando um outro assunto que nos interessa bastante, decidimos comentar filmes que nos chamam a atenção, por darem acesso a reflexões bem pertinentes sobre alguns conceitos da psicanálise e iniciamos, portanto, com o filme Amnésia (Dir.: Christopher Nolan / 2000). Em uma abordagem muito interessante, a história da personagem central, que adquiriu em sua vida adulta uma forma de amnésia total para fatos que tenham ocorrido há mais de cinco ou dez minutos, é enfocada em uma narrativa em que os fatos são apresentados para o expectador em ordem inversa, na clara intenção de convocá-lo ao lugar dessa personagem central. Este protagonista revela-se como um justiceiro ou o que o valha, na medida em que sua motivação principal repousa em um fato crucial: o assassinato de sua esposa e a busca do responsável por isso. O que chama a atenção, entretanto, é o fato de que a cada manhã o protagonista acorda e não se lembra de onde está, como chegou até ali e nem o que deve fazer em seguida. À medida que vai explorando o local onde está e chega até um espelho, percebe que seu corpo (desconhecido) está coberto de tatuagens – feitas por ele mesmo, muitas delas palavras escritas de trás para frente, para facilitar o seu reconhecimento no reflexo do espelho – e que são esses sinais gráficos que lhe descrevem o que deve fazer e como se comportar. Ou seja, são essas inscrições que lhe ditam os contornos específicos de seu desejo. Durante o transcorrer do filme, vê-se que o protagonista, percebendo o valor das tatuagens para a sua existência, sempre que pode tatua-se com uma ou outra informação que lhe pareça mais relevante no momento: um nome, um fato, um lugar. Com isso, vai inscrevendo literalmente em seu corpo as marcas de sua história.

Isso nos faz pensar no que se convencionou chamar de estádio do espelho (Lacan...), em que uma metáfora bastante rica da teoria psicanalítica diz que o sujeito se reconhece, se constitui, a partir do olhar do Outro. A partir de um olhar externo que vê não somente o que é aparente no sujeito, mas que também atribui (inscreve) a este sujeito características e qualidades que fazem parte da expectativa (desejo) desse Outro, o sujeito se faz desejante do desejo do Outro.
O que nos faz pensar sobre esta metáfora teórica? Bem, no filme, revela-se uma circunstância muito interessante – adiantamos: com esta sequência na reflexão vamos acabar revelando até mesmo o final do filme; para quem não o assistiu ainda, nossas desculpas antecipadas. Não há clareza ou garantia de que os acontecimentos que se poderiam depreender das marcas no corpo do protagonista realmente o levariam a concluir sobre quem é o assassino de sua esposa. De fato, até mesmo o assassinato de sua esposa pode ser colocado em dúvida. Ou seja, estamos diante, portanto, de uma outra verdade, que é a verdade do desejo deste sujeito. E qual é a novidade? A novidade estaria em que no caso de uma pessoa com suas lembranças normalmente preservadas e à disposição, veríamos atuar a fantasia – o trabalho psíquico sobre conteúdos, lembranças e fatos que se moldam para dar conta da satisfação (parcial) do desejo. Mas para esta personagem, o desejo é sustentado por uma fantasia literal, não imaginária, que se anuncia e toma forma apenas quando ele testemunha as mensagens escritas em seu corpo tatuado. E com isso ele procura satisfazer a sua fantasia inconsciente de herói vingador de forma repetitiva. Tanto que – cena magistralmente concebida! – logo após executar a tiros o seu suspeito principal, em vez de registrar o fato e dar por encerrada a busca, um sorriso irônico substitui a perplexidade e ele não faz a marca que evidenciaria a concretização de sua vingança.  Assim poderá continuar a exercer a sua busca por um novo assassino que não importa ser ou não culpado de um crime que talvez nem tenha ocorrido, mas o seu desejo relacionado à identificação com um herói vingador permanecerá atuando legitimamente.
Voltando ao estádio do espelho, cabe lembrar que ao protagonista restou-lhe apenas o desejo de desejo do Outro atuando em si sem mediações, isto é, sem o intermédio dos fatos e lembranças cotidianas concretas que lhe dariam a flexibilidade instrumental para lidar com o que lhe adviria pela via da identificação. Ou seja, os efeitos da constituição da sua personalidade, ocorrida nos princípio de sua vida através da citada dinâmica de reconhecer-se no olhar do Outro, permaneciam atuando e buscando satisfação em um esquema narcísico, que era potencializado pelo fato de que as marcas de motivação de conduta não sofriam mais o teste da realidade – afinal, eram verdades tatuadas em seu corpo.

Aprofundando um pouco, é quase como se a falta das memórias recentes e o artifício de sustentar a fantasia em marcas concretas no corpo levasse este típico neurótico obsessivo, que estaria satisfeito em apenas imaginar um assassinato, atuar como um perverso, que concretiza a fantasia do neurótico. E nisso é que reside, em nossa opinião, a genialidade deste filme, que nos faz ver algumas fronteiras de estrutura de personalidade serem transpassadas graças aos recursos de uma história bem engendrada e bem narrada.

domingo, 2 de março de 2014

Um pouco de psicanálise com Foo Fighters

Colocamos o link para este vídeo da música The Pretender - Foo Fighters que é, em nossa opinião, uma pequena “aula” não intencional sobre alguns dos conceitos mais importantes da psicanálise que se podem observar expostos de maneira muito intensa e bastante bem dramatizados.

http://www.youtube.com/watch?v=EamVwJrIEcQ

São alusões bem interessantes - e tocantes - a pontos como conteúdos inconscientes, recalque e afeto.

Na dúvida, fica a dica de ler a ótima metáfora sobre estes mesmos conceitos no Vol XI das Obras Completas de Sigmund Freud, principalmente na primeira e na segunda das 5 Lições de Psicanálise (1909).