terça-feira, 15 de abril de 2014

Futebol, Política, Religião e Narcisismo

O que nos faz escrever um pouco sobre este tema é a nossa constatação um pouco espantada acerca de posições de velhos amigos que são externadas mais intensa e autenticamente graças à arena comunicacional do Facebook. Em política, radicalismos à esquerda e à direita; no futebol, um passionalismo violento e por vezes até “desnecessariamente” chulo; e em religião, a sustentação de dogmas há muito derrubados por pessoas que nos surpreendem por sabermos de sua formação e histórico. São opiniões, bandeiras, direcionamentos que, no fundo, no fundo, falam muito pouco de argumentação ou racionalização, mas antes de identificação.Vamos explorar um pouco. A identificação é um fenômeno psíquico que serve para pelo menos duas coisas:
- qualificar o meu Ego com atributos que detecto no meu objeto de amor, para que eu possa ser amado por mim mesmo, onde “mim mesmo” = Id + Ego + Superego;
- auxiliar no recalque de conteúdos inconscientes negando atributos que são a própria expressão daquilo que me é mais intenso e conscientemente indesejável e condenável.

Ou seja, através da identificação, desde muito cedo, começo a construir a minha moral - a diferença do que é bom e do que é mau - torcendo para que isso se aproxime de uma ética - o bem e o mal, o certo e o errado razoavelmente consensuados em sociedade. Mas veja-se que isso é muito profundo, primevo e básico, pois estamos falando do que realmente tem valor para mim, cujas raízes remontam aos primeiros anos de vida. Nesse contexto, estar certo é de uma importância fundamental, próxima do orgânico, para o neurótico comum, pois estar errado pode, sim, levar à proximidade da morte (angústia). Mas eis que com isso já estamos falando de narcisismo, um conceito fundamental da psicanálise que nos ajuda a entender a coisa toda neste momento. Então, o narcisismo é isso de se estar e permanecer muito identificado com a expectativa do Outro (com o desejo do Outro). Diz-se por aí que Outro (= “grande outro”) é a interação com meus pais, com as coisas do mundo, com suas leis e principalmente com a linguagem, enfim: o que determinou a minha imagem, os meus valores e o meu jeito de ser, afinal. Uma vez estabelecida esta dinâmica de ocupar o lugar do desejo do Outro, fica muito difícil contorná-la, pois isso tudo se torna, no fundo, uma defesa. E é assim que nos colocamos no mundo, identificados positiva ou negativamente com uma série de coisas que nos ajudam a expressar nosso desejo e armar nossas defesas.

Ocorre então que essas defesas são o último reduto do que é simbolizável, ou seja exprimível em palavras - não concordo com isso, não gosto daquilo, abomino aquela pessoa.O que mexe com as defesas das pessoas, na realidade, está no limite do que é simbolizável e facilmente se torna não-simbolizável e manifesta-se como afeto, como emoção, já próximo à angústia. Portanto, ouvir que o seu time é ruim, que a sua religião é uma mentira ou que o seu candidato ou partido não prestam, longe de ser “apenas uma crítica”, é percebido por muitas pessoas como um ataque pessoal, pois é a desconstrução de uma identificação muito importante e a defesa vai ser proporcional à de quem está sendo encurralado e ameaçado de morte. E mais do que isso, nessa balada as pessoas vão construindo mitos com distorções da verdade e dos fatos para que se tornem inexpugnáveis - o que os torna, na realidade, caricatos e muitas vezes inverossímeis.

Nossa preocupação em publicar este post justifica-se na medida em que este ano será de intensas paixões: o futebol com a Copa e suas diversas polêmicas possíveis, e a religião e a política, cada vez mais miscíveis nas confusas correntes partidárias que procuram associar moral religiosa com retidão de caráter ou o que quer que seja. O que já estamos vendo é o enorme investimento de energia das pessoas em assegurar que o seu narcisismo primário seja preservado a todo custo, com a assunção de posições cristalizadas, manutenção de maniqueísmos artificiais e a utilização de argumentos assentados em bases cada vez mais frágeis. Tememos, pois, que a estrutura imatura da nossa sociedade nos reserve momentos de violência inéditos, especialmente no campo da política, onde o voto - que, convenhamos, é sinônimo de desejo - carrega um intenso lastro de associação e de solidariedade à figura de uma pessoa ou instituição imaginária - um produto a ser vendido durante a eleição.E também imaginárias, mas muito intensas, têm sido as manifestações de defesa e de rejeição a este ou aquele ícone ou instituição que temos testemunhado até mesmo em nosso círculo de convivência. Um investimento de energia compatível com o que se supõe ter ocorrido em ambientes pré revolucionários ou como reação a regimes absolutistas. Parece-nos, portanto, que tempos complicados se avizinham, pois, como diz aquele provérbio ruandês: "Você pode se distanciar de quem está correndo atrás de você! Mas, não do que está correndo dentro de você!"