segunda-feira, 8 de abril de 2019

Venas abiertas



Esse é o nome de um programa da RádioEducativa (97,1 MHz - Curitiba) que ouço já há algum tempo, mas que só agora parei para pensar no significado do nome: “Venas Abiertas”.
Claramente inspirado no livro “Las Venas Abiertas de America Latina” (Eduardo Galeano – 1971), o nome guarda um significado trágico. Afinal, ao abrirem-se as veias, o sangue esvai-se e, no intento desesperado de mostrar/expor esse sangue para demonstrar o que contém de belo e de terrível, o sujeito perecerá. Opus Magna e Finis Coronat Opus.
Não posso deixar de pensar na paixão que está contida nesse esforço de resistência constante dos nossos Hermanos em divulgar a sua cultura e a sua história que, longe de ser a “bem-resolvida” amizade com o colonizador português da Terra Brasilis, guarda uma revolta contra o conquistador espanhol que se mostra visceral, talvez até não com a intensidade a que o termo pode nos remeter, mas como a presença constante de um corpo estranho com que se tem que lidar durante a existência.
Pelo menos, falam disso. E com poesia.


sexta-feira, 16 de maio de 2014

Depressão e Fármacos - uma breve reflexão

O tema depressão sempre é atual e frequente. Afinal, não é raro falar-se sobre depressão e já ouvirmos que esta ou aquela pessoa está tomando um ou outro remédio - daqueles famosos e que podem ser referenciados facilmente em diversos sites da internet como este http://www.psicosite.com.br/far/and/amytril.htm, por exemplo.
Por outro lado, sempre nos ronda a reflexão sobre um dos textos mais importantes da psicanálise - Luto e Melancolia (Obras Completas - Vol XIV) - onde Freud estabelece uma série de conceitos importantíssimos e básicos para a psicanálise dentre os quais vale ressaltar, inclusive, a diferença básica entre estes termos:
Luto - a pessoa sofre por uma perda específica, por algum tempo. Se este tempo for longo demais, pode incapacitar a pessoa para vida.
Melancolia - a pessoa sofre inespecificamente, sofre por tudo e por nada. É como um caráter, uma forma de funcionamento que difere do luto por não guardar pontos de associação muito claros e resultar em algo como um estado de desânimo intenso e constante para a vida.
Como o desânimo, a tristeza e a inibição, entre diversos outros sintomas, são parecidos entre estes dois estados, uma visão médica pode encaminhar para o tratamento indistinto dos sintomas aparentes. E destacamos: dos sintomas
Não podemos nos furtar aqui a colocar em jogo dois outros conceitos: inconsciente e afeto. A dinâmica do inconsciente - do desconhecido, do recalcado - mobiliza o psiquismo em torno de representações cruciais para o sujeito, mas que eventualmente não estão simbolizadas para o seu ego, e então essa energia se dissipa pela via do afeto, que impressiona o corpo com o que se pode chamar popularmente de emoções.
Pois então, o que fazem os fármacos? Ajudam, sim, a atenuar as emoções através de uma série de interações bioquímicas em que neurotransmissores e hormônios são “ajeitados” e o sujeito fica mais estável. Mas, convenhamos, o móvel das emoções, o que ficou não simbolizado e representa o núcleo da questão não foi modificado. Mais do que isso, fica relegado a um silêncio amordaçado.
O que queremos denotar, portanto, é que o luto prolongado e a melancolia têm a mesma importância patológica para o psiquismo do que pilares rachados e partidos teriam para um edifício ( ! ). O sujeito (e o edifício) tem sua estrutura próxima à de um colapso, mas cobrem-se as rachaduras e imperfeições com a massa corrida dos fármacos. O sujeito (e o edifício) fica(m) mais apresentável(eis) à sociedade, realmente, mas não há como negar a precariedade de sua(s) estrutura(s).
O assunto é amplo, polêmico muitas vezes, e uma vasta literatura foi produzida e pode ser consultada. Um livro muito interessante é o de Andrew Solomon - O Demônio do Meio Dia (Uma anatomia da depressão) em que o autor, em primeira pessoa, aprofunda-se em sua própria depressão e procura contextualizá-la em diversas formas de abordagem. Mas, para quem considerar o texto de Luto e Melancolia, não se pode deixar de detectar o caráter melancólico do autor sendo sustentado. Sustentado? Eis aqui o ponto de inflexão da psicanálise: não se pode perder de vista que o sujeito melancólico, por mais estranho e ilógico que possa parecer, mantém ativo, ainda que não intencionalmente, um modo de existir melancólico. E escapar desta armadilha que a estrutura do seu inconsciente armou para este sujeito é um dos grandes desafios para o qual a psicanálise se apresenta como uma alternativa bastante apropriada, na medida em que, da aplicação do seu método, deverá advir uma ressignificação do próprio sujeito.

Não esquecendo: assim como a intervenção em um edifício com pilares abalados é custosa, demorada e modifica-o substancialmente, o mesmo deve-se esperar que ocorra ao sujeito de um processo analítico.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Futebol, Política, Religião e Narcisismo

O que nos faz escrever um pouco sobre este tema é a nossa constatação um pouco espantada acerca de posições de velhos amigos que são externadas mais intensa e autenticamente graças à arena comunicacional do Facebook. Em política, radicalismos à esquerda e à direita; no futebol, um passionalismo violento e por vezes até “desnecessariamente” chulo; e em religião, a sustentação de dogmas há muito derrubados por pessoas que nos surpreendem por sabermos de sua formação e histórico. São opiniões, bandeiras, direcionamentos que, no fundo, no fundo, falam muito pouco de argumentação ou racionalização, mas antes de identificação.Vamos explorar um pouco. A identificação é um fenômeno psíquico que serve para pelo menos duas coisas:
- qualificar o meu Ego com atributos que detecto no meu objeto de amor, para que eu possa ser amado por mim mesmo, onde “mim mesmo” = Id + Ego + Superego;
- auxiliar no recalque de conteúdos inconscientes negando atributos que são a própria expressão daquilo que me é mais intenso e conscientemente indesejável e condenável.

Ou seja, através da identificação, desde muito cedo, começo a construir a minha moral - a diferença do que é bom e do que é mau - torcendo para que isso se aproxime de uma ética - o bem e o mal, o certo e o errado razoavelmente consensuados em sociedade. Mas veja-se que isso é muito profundo, primevo e básico, pois estamos falando do que realmente tem valor para mim, cujas raízes remontam aos primeiros anos de vida. Nesse contexto, estar certo é de uma importância fundamental, próxima do orgânico, para o neurótico comum, pois estar errado pode, sim, levar à proximidade da morte (angústia). Mas eis que com isso já estamos falando de narcisismo, um conceito fundamental da psicanálise que nos ajuda a entender a coisa toda neste momento. Então, o narcisismo é isso de se estar e permanecer muito identificado com a expectativa do Outro (com o desejo do Outro). Diz-se por aí que Outro (= “grande outro”) é a interação com meus pais, com as coisas do mundo, com suas leis e principalmente com a linguagem, enfim: o que determinou a minha imagem, os meus valores e o meu jeito de ser, afinal. Uma vez estabelecida esta dinâmica de ocupar o lugar do desejo do Outro, fica muito difícil contorná-la, pois isso tudo se torna, no fundo, uma defesa. E é assim que nos colocamos no mundo, identificados positiva ou negativamente com uma série de coisas que nos ajudam a expressar nosso desejo e armar nossas defesas.

Ocorre então que essas defesas são o último reduto do que é simbolizável, ou seja exprimível em palavras - não concordo com isso, não gosto daquilo, abomino aquela pessoa.O que mexe com as defesas das pessoas, na realidade, está no limite do que é simbolizável e facilmente se torna não-simbolizável e manifesta-se como afeto, como emoção, já próximo à angústia. Portanto, ouvir que o seu time é ruim, que a sua religião é uma mentira ou que o seu candidato ou partido não prestam, longe de ser “apenas uma crítica”, é percebido por muitas pessoas como um ataque pessoal, pois é a desconstrução de uma identificação muito importante e a defesa vai ser proporcional à de quem está sendo encurralado e ameaçado de morte. E mais do que isso, nessa balada as pessoas vão construindo mitos com distorções da verdade e dos fatos para que se tornem inexpugnáveis - o que os torna, na realidade, caricatos e muitas vezes inverossímeis.

Nossa preocupação em publicar este post justifica-se na medida em que este ano será de intensas paixões: o futebol com a Copa e suas diversas polêmicas possíveis, e a religião e a política, cada vez mais miscíveis nas confusas correntes partidárias que procuram associar moral religiosa com retidão de caráter ou o que quer que seja. O que já estamos vendo é o enorme investimento de energia das pessoas em assegurar que o seu narcisismo primário seja preservado a todo custo, com a assunção de posições cristalizadas, manutenção de maniqueísmos artificiais e a utilização de argumentos assentados em bases cada vez mais frágeis. Tememos, pois, que a estrutura imatura da nossa sociedade nos reserve momentos de violência inéditos, especialmente no campo da política, onde o voto - que, convenhamos, é sinônimo de desejo - carrega um intenso lastro de associação e de solidariedade à figura de uma pessoa ou instituição imaginária - um produto a ser vendido durante a eleição.E também imaginárias, mas muito intensas, têm sido as manifestações de defesa e de rejeição a este ou aquele ícone ou instituição que temos testemunhado até mesmo em nosso círculo de convivência. Um investimento de energia compatível com o que se supõe ter ocorrido em ambientes pré revolucionários ou como reação a regimes absolutistas. Parece-nos, portanto, que tempos complicados se avizinham, pois, como diz aquele provérbio ruandês: "Você pode se distanciar de quem está correndo atrás de você! Mas, não do que está correndo dentro de você!"

quarta-feira, 19 de março de 2014

Filme "Amnésia" (EUA-2000 "Memento") - Desejo x Memória

Inaugurando um outro assunto que nos interessa bastante, decidimos comentar filmes que nos chamam a atenção, por darem acesso a reflexões bem pertinentes sobre alguns conceitos da psicanálise e iniciamos, portanto, com o filme Amnésia (Dir.: Christopher Nolan / 2000). Em uma abordagem muito interessante, a história da personagem central, que adquiriu em sua vida adulta uma forma de amnésia total para fatos que tenham ocorrido há mais de cinco ou dez minutos, é enfocada em uma narrativa em que os fatos são apresentados para o expectador em ordem inversa, na clara intenção de convocá-lo ao lugar dessa personagem central. Este protagonista revela-se como um justiceiro ou o que o valha, na medida em que sua motivação principal repousa em um fato crucial: o assassinato de sua esposa e a busca do responsável por isso. O que chama a atenção, entretanto, é o fato de que a cada manhã o protagonista acorda e não se lembra de onde está, como chegou até ali e nem o que deve fazer em seguida. À medida que vai explorando o local onde está e chega até um espelho, percebe que seu corpo (desconhecido) está coberto de tatuagens – feitas por ele mesmo, muitas delas palavras escritas de trás para frente, para facilitar o seu reconhecimento no reflexo do espelho – e que são esses sinais gráficos que lhe descrevem o que deve fazer e como se comportar. Ou seja, são essas inscrições que lhe ditam os contornos específicos de seu desejo. Durante o transcorrer do filme, vê-se que o protagonista, percebendo o valor das tatuagens para a sua existência, sempre que pode tatua-se com uma ou outra informação que lhe pareça mais relevante no momento: um nome, um fato, um lugar. Com isso, vai inscrevendo literalmente em seu corpo as marcas de sua história.

Isso nos faz pensar no que se convencionou chamar de estádio do espelho (Lacan...), em que uma metáfora bastante rica da teoria psicanalítica diz que o sujeito se reconhece, se constitui, a partir do olhar do Outro. A partir de um olhar externo que vê não somente o que é aparente no sujeito, mas que também atribui (inscreve) a este sujeito características e qualidades que fazem parte da expectativa (desejo) desse Outro, o sujeito se faz desejante do desejo do Outro.
O que nos faz pensar sobre esta metáfora teórica? Bem, no filme, revela-se uma circunstância muito interessante – adiantamos: com esta sequência na reflexão vamos acabar revelando até mesmo o final do filme; para quem não o assistiu ainda, nossas desculpas antecipadas. Não há clareza ou garantia de que os acontecimentos que se poderiam depreender das marcas no corpo do protagonista realmente o levariam a concluir sobre quem é o assassino de sua esposa. De fato, até mesmo o assassinato de sua esposa pode ser colocado em dúvida. Ou seja, estamos diante, portanto, de uma outra verdade, que é a verdade do desejo deste sujeito. E qual é a novidade? A novidade estaria em que no caso de uma pessoa com suas lembranças normalmente preservadas e à disposição, veríamos atuar a fantasia – o trabalho psíquico sobre conteúdos, lembranças e fatos que se moldam para dar conta da satisfação (parcial) do desejo. Mas para esta personagem, o desejo é sustentado por uma fantasia literal, não imaginária, que se anuncia e toma forma apenas quando ele testemunha as mensagens escritas em seu corpo tatuado. E com isso ele procura satisfazer a sua fantasia inconsciente de herói vingador de forma repetitiva. Tanto que – cena magistralmente concebida! – logo após executar a tiros o seu suspeito principal, em vez de registrar o fato e dar por encerrada a busca, um sorriso irônico substitui a perplexidade e ele não faz a marca que evidenciaria a concretização de sua vingança.  Assim poderá continuar a exercer a sua busca por um novo assassino que não importa ser ou não culpado de um crime que talvez nem tenha ocorrido, mas o seu desejo relacionado à identificação com um herói vingador permanecerá atuando legitimamente.
Voltando ao estádio do espelho, cabe lembrar que ao protagonista restou-lhe apenas o desejo de desejo do Outro atuando em si sem mediações, isto é, sem o intermédio dos fatos e lembranças cotidianas concretas que lhe dariam a flexibilidade instrumental para lidar com o que lhe adviria pela via da identificação. Ou seja, os efeitos da constituição da sua personalidade, ocorrida nos princípio de sua vida através da citada dinâmica de reconhecer-se no olhar do Outro, permaneciam atuando e buscando satisfação em um esquema narcísico, que era potencializado pelo fato de que as marcas de motivação de conduta não sofriam mais o teste da realidade – afinal, eram verdades tatuadas em seu corpo.

Aprofundando um pouco, é quase como se a falta das memórias recentes e o artifício de sustentar a fantasia em marcas concretas no corpo levasse este típico neurótico obsessivo, que estaria satisfeito em apenas imaginar um assassinato, atuar como um perverso, que concretiza a fantasia do neurótico. E nisso é que reside, em nossa opinião, a genialidade deste filme, que nos faz ver algumas fronteiras de estrutura de personalidade serem transpassadas graças aos recursos de uma história bem engendrada e bem narrada.

domingo, 2 de março de 2014

Um pouco de psicanálise com Foo Fighters

Colocamos o link para este vídeo da música The Pretender - Foo Fighters que é, em nossa opinião, uma pequena “aula” não intencional sobre alguns dos conceitos mais importantes da psicanálise que se podem observar expostos de maneira muito intensa e bastante bem dramatizados.

http://www.youtube.com/watch?v=EamVwJrIEcQ

São alusões bem interessantes - e tocantes - a pontos como conteúdos inconscientes, recalque e afeto.

Na dúvida, fica a dica de ler a ótima metáfora sobre estes mesmos conceitos no Vol XI das Obras Completas de Sigmund Freud, principalmente na primeira e na segunda das 5 Lições de Psicanálise (1909).

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Reflexão: do "fiu-fiu" ao estupro coletivo

Estivemos refletindo nos últimos dias sobre a questão da violência contra a mulher. E fomos do fiu-fiu ao estupro coletivo em algumas conversas que partiram de um relato bem marcante de uma profissional que passa pela seguinte situação: como tem uma função administrativa relacionada ao atendimento de construtoras, transita entre escritórios e obras diariamente e quando está nas obras é frequentemente assediada de formas que não só a constrangem como também causam-lhe temor de que algo mais invasivo ou violento venha a ocorrer com ela - note-se: em ambiente/situação de trabalho.

Após muito pensar e discutir - mesmo! - pensamos ter chegado a alguns pontos que nos atrevemos a compartilhar. Procuramos pensar um pouco mais sobre a questão do desejo em ambos os lados e os efeitos que provocam nos gêneros supostamente complementares. Adiantamos que uma série de generalizações não muito cuidadosas serão feitas a bem da concisão. Vejamos: a mulher, como resultado da resolução tardia do complexo de Édipo (ver, entre outros, Obras Completas do Sig Vol XIX  pg 309 em diante) busca ter sua beleza reconhecida eminentemente em olhares. Ou seja, ser vista e ver sua beleza reconhecida no olhar do outro. Embora haja a insinuação da sensualidade e do despertar do desejo sexual no outro, isto fica (e deve ficar) velado e não dito, a priori. Se for dito, o elogio e o reconhecimento, segundo nossa observação e vivência, deveria ficar no campo do gentil galanteio: como você está elegante, como você está bonita, como você ficou bem assim - ou o que o valha. Mas eis que a contraparte estimulada por esta mulher hipotética é um homem “genérico” que, segundo nos lembra Freud (Diferenças Anatômicas), teve desenvolvimento completamente diferente e alimenta fantasias que não pressupõem a supressão da componente do desejo sexual (e da competição). 
Com isso, temos diversas reações possíveis, portanto, desde o fiu-fiu até os casos de estupro coletivo de que se tem falado na Índia, ultimamente. Enquanto para a mulher uma barreira “natural” (inconsciente) atua para restringir-lhe o acesso ao desejo sexual associado à sua imagem, para o homem, essa barreira tem que ser construída moralmente, e lhe custa mantê-la. Tanto que às vezes, e com frequência muito maior do que a que podemos aceitar, essa barreira, ou limite, ou lei, não funciona e sucumbe ao desejo. E quando isso acontece, não nos surpreendamos com uma série de racionalizações bizarras que acompanharão o fenômeno: desde o sentimento de desprezo, passando pelo de posse legitimada pelos “sinais provocantes emitidos”, até o de “ela estava praticamente pedindo isso”. Dinâmicas perversas à parte, ativemo-nos ao desafio de dividir um pouco o quadro em possíveis desdobramentos:

1. A criação machista
A fantasia de posse, desprezo e superioridade detectada no discurso geral masculino de que nos fala o texto do Sig (idem) é sustentada e cultuada quase como regra e, notemos, só foi questionado mais apropriadamente a partir do séc XX, a partir da consolidação das reivindicações dos movimentos feministas. Antes disso, a mulher era coisificada, mesmo. Hoje, anda, nos admiramos abismados com o movimento das mulheres em alguns países do islã que buscam - votar? entrar na universidade? - não! apenas não terem mais os clitóris de suas filhas compulsoriamente mutilados, conforme o costume de suas sociedades. Portanto, não nos enganemos: há ainda muito chão para ser caminhado. Neste ponto da discussão surgiu uma grande dúvida: mas não dá para fazer nada, então? O proto-homem está aí e é um fato da “natureza” que a sociedade é machista? Não. De forma nenhuma. A linha a ser tomada, na nossa opinião, seria a de que a educação sexual na escola fosse tratada de maneira um pouco diferente, de forma que abordasse não apenas o caráter fisiológico, reprodutivo e preventivo - patologicamente falando - da sexualidade, mas também a interação de gêneros, a identidade sexual e, talvez principalmente, o reconhecimento das diferenças de expectativa (fantasia) de cada gênero, buscando, num exercício de interpessoalidade, civilizar - e esse é o termo - a expressão do desejo sexual. Utilizamos o termo civilizar, pois pensamos que o vetor de inclusão da mulher na vida civil foi o marco que mais conflitos expôs na questão da violência, pois a partir do reconhecimento da cidadã, seus direitos se legitimaram, seus problemas começaram efetivamente a serem contados e discutidos e é aí que se encontra terreno simbólico firme para que alguma mudança ocorra.

2. O problema do “padrão-periguete”
Que a sensualização da mulher é um negócio - no sentido mais comercial da palavra - não há dúvida. A venda da imagem da mulher provocante - que atiça a fantasia tanto da mulher (poderosa?) quanto do homem (gostosa/desejável?) sempre deu retorno. Mas acho que vale refletirmos um pouco mais sobre o que é isso, também sob uma dialética do desejo. Se formos graduar - se é que isso é possível - a sensualização, podemos pensar em que uma mulher vestida como periguete aproxima-se bastante da fantasia de permissividade e provocação sexual que em outros estilos feminios de se vestir é mais - ou totalmente - velada. 
Ou seja, para o mundo masculino caricato, esse apelo leva à imediata sustentação no real de uma correspondência à fantasia masculina da relação sexual possível - porque sugerida - e, talvez até, quem sabe? desejada por essa mulher. Não é a roupa da mulher que vai univocamente levar a situações de maior risco de violência, pois os relatos de estupros não estão associados de maneira nenhuma a este tipo de maneira de se vestir, mas pode aumentar a confusão a ser processada pelo nosso proto-homem que, diante dos sinais que ele considera claros como de concessão ao seu desejo, não raramente acaba atravessando a fronteira do comportamento razoável ao interpretar o papel de mulher provocante com o de mulher absolutamente disponível. Vemos aqui, portanto, um outro desdobramento do conflito de fantasias entre os gêneros didaticamente representados nesta reflexão e que nos leva a pensar no desserviço que presta à feminilidade o exagero e a banalização do apelo sexual feminino, na medida em que é cultuado como padrão de beleza e que, não esqueçamos, é infligido desde cedo às crianças. Talvez estejamos exagerando, pois, afinal, muitas (tomara!) das mulheres que eventualmente nos leem agora foram entretidas com várias periguetes instituídas e travestidas de educadoras pela mídia de massa em suas infâncias e aparentemente não tiveram suas auto-imagens afetadas por essa influência. Ou tiveram?... Convenhamos que é muito marcante o quanto de insatisfação e decepção com seus próprios corpos são observadas nas conversas e depoimentos da chamada mulher moderna. De onde será que vem isso?

3. Reflexos na sexualidade feminina

Então, recapitulando, a mulher veste-se para ficar bonita, uma fantasia construída a partir de uma série de identificações, para si e para um homem idealizado que é para ela, a priori, inicialmente dessexualizado. Ok. Mas à medida que o seu próprio desejo vai aflorando e ela entra na dinâmica do jogo sexual de fato, às vezes esbarra em algum dos pontos que levantamos. Afinal, ao mesmo tempo em que percebe o quanto pode ser (mais) desejada pelo homem de sua escolha ao corresponder às suas (dele) fantasias sensuais, também está exposta a algumas associações potencialmente negativas: a do “padrão periguete”, por exemplo - aquela que se expõe ao risco da violência machista por ressoar com a sua fantasia de mulher disponível - ou até mesmo a da prostituta - aquela que está incondicionalmente disponível ao desejo do homem  e será paga por isso. Ou seja, essencialmente não há nada de mal, pelo contrário, pode ser - e é bom que seja - muito divertido a mulher poder desempenhar o papel de super-sensual, transitando entre as várias disposições da sua sexualidade. Mas a exposição a esse papel pode acabar associada à lembrança ou associação com situações de preconceito, humilhação, exposição ou mesmo de violência factual, que resumem e até mesmo bloqueiam a concretização da fantasia e o exercício de desejo femininos em relação ao homem. É aí que pensamos que o direito e o desejo de se mostrar sensual, bonita e provocante, por causa da não complementaridade das fantasias entre os gêneros, reserva uma tarefa complicada para algumas mulheres, que têm que fazer-se bastante seguras de si para conseguir irrelevar ou repelir desde os fiu-fius aparentemente inocentes até os comportamentos inadequados e/ou violentos de desconhecidos (ou conhecidos) e manterem-se donas de seu desejo e de sua sexualidade.

Sugerimos ainda, o seguinte vídeo, para dar mais consistência ao caldo:






sábado, 15 de fevereiro de 2014

Diferença entre psiquiatra, psicólogo e psicanalista




Esta é uma dúvida que sempre aparece quando comentamos nossa orientação psicanalítica. Vamos às definições que foram publicadas na Super Interessante de Jan/2010:



PSIQUIATRA
HISTÓRIA: Quando surgiram, ainda no século 18, os psiquiatras trabalhavam apenas em hospícios. Só quando a psiquiatria pegou emprestados conceitos da psicologia é que casos mais moderados foram para consultórios.
CASOS: Trata sintomas mais graves e de definição mais clara, como esquizofrenia, Alzheimer e depressões profundas.
COMO ATUA: Como nesses casos só a terapia é muito pouco, o tratamento é feito com remédios, sendo monitorada a reação que o paciente tem a eles.
FORMAÇÃO: Seis anos do curso de medicina, mais 3 de residência.

PSICÓLOGO

HISTÓRIA: O termo surgiu na Grécia antiga, mas seu significado moderno só veio no século 20.
CASOS: Há desde os psicólogos sociais, que estudam as massas, até os de RH, que selecionam candidatos, mas o que atende no consultório é o psicoterapeuta, que diagnostica casos de fobia ou ciúme excessivo, por exemplo.
COMO ATUA: Muda suas técnicas de tratamento constantemente, sempre em busca de uma interação com o paciente - daí a sua fama de tagarela entre psiquiatras e psicanalistas.
FORMAÇÃO: Cinco anos do curso de psicologia.

PSICANALISTA
HISTÓRIA: Teve origem no século 19, com o médico austríaco Sigmund Freud.
ATUAÇÃO: Medos, raivas, inibições - as anormalidades normais.
COMO ATUA: Mais do que uma cura, o que se busca é a transformação da pessoa, a partir da compreensão dos seus problemas. O paciente fala tudo que vem à cabeça; cabe ao psicanalista interpretar de forma incisiva o que ele quis dizer inconscientemente, ajudando-o no autoconhecimento.
FORMAÇÃO: Especialistas dizem que só quem foi analisado pode analisar seus pacientes, e chega-se a passar 8 anos em cursos de sociedades psicanalíticas.
(Fontes Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP e psicanalista; Suely Gevertz, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.)

Já ajuda bastante, mas achamos que vale comentar um pouco mais.
Existem psicólogos e psiquiatras que são psicanalistas, porque fizeram sua formação em psicanálise depois de suas formações acadêmicas. Existem psicólogos não-psicanalistas, mas que atuam em uma linha psicanalítica, sem adotar todos os preceitos da teoria constituída. Além disso, há diversas linhas de psicoterapia: comportamental, gestalt, congnitiva, psicodrama, entre outras.

A formação do psicanalista pode ser bem variada. Predominantemente, são psicólogos e médicos. Mas também há filósofos, advogados, fonoaudiólogos e até engenheiros - como é o caso deste que tecla agora -, pois a formação em psicanálise não considera o conhecimento acadêmico, mas sim o percurso psicanalítico de cada aspirante a atuar nesta área.